Prometeram a ele um salário generoso e um equilíbrio melhor entre a vida pessoal e a profissional, bem como uma chance de viver na vibrante metrópole de Bangcoc. O recrutador lhe disse que sua fluência em inglês seria bem aproveitada como tradutor em uma empresa de comércio eletrônico.
Mais que qualquer outra coisa, Neo Lu, um funcionário de escritório chinês de 28 anos, acreditava que o trabalho que lhe ofereciam seria o novo começo de que precisava para economizar dinheiro e realizar seu sonho de emigrar para o Ocidente. Assim, em junho de 2022, ele fez suas despedidas e voou para a Tailândia em direção ao seu novo emprego.
Entretanto, quando chegou, a cabeça entrou em parafuso por causa do sol escaldante — e da sensação de que alguma coisa estava muito errada. Lu foi largado no que parecia ser um campo de trabalhos forçados, construído ao acaso em um trecho de selva e cercado de terrenos lamacentos, e não em um edifício de escritórios na cidade.
Lu percebeu rapidamente que, na verdade, não havia trabalho de tradução. Nem uma empresa de comércio eletrônico. Tudo era parte de um estratagema que havia começado com uma publicação em um fórum de empregos chinês, em uma bem embalada chamada preparada por traficantes de seres humanos para fazer com que pessoas como ele fossem para a Tailândia.
Os traficantes conduziram Lu através do rio Moei, um canal pantanoso na fronteira porosa da Tailândia, e o contrabandearam, sem seu conhecimento, para um canto remoto de Mianmar, onde o entregaram a uma gangue chinesa que havia pagado por ele.
Basicamente, Lu foi sequestrado e vendido a uma empresa criminosa, longe de tudo o que conhecia.
Foi assim que o chinês se tornou uma das centenas de milhares de pessoas traficadas por gangues criminosas e mantidas em cativeiro. É o que um grupo de investigação chamou de um “câncer criminoso”, composto de exploração, violência e fraude, que se enraizou nas nações mais pobres do Sudeste Asiático.
Lu, que atende pelo apelido de Neo — referência ao personagem dos filmes da série Matrix —, falou ao New York Times com a condição de que seu nome completo não fosse divulgado, por medo de possíveis represálias dos criminosos. O Times verificou os detalhes da sua viagem, o cativeiro e o resgate. Seus pais e dois amigos foram entrevistados. Também foram analisadas mensagens de texto, cópias de documentos de viagem e cartas emitidas pelas autoridades chinesas.
O relato de Lu de sua desventura alinha-se com o de muitas outras pessoas que foram resgatadas desses campos. Quando sua experiência e o material que ele conseguiu contrabandear são postos lado a lado, forma-se uma rara janela pela qual é possível observar o funcionamento interno e as táticas de um submundo que opera em uma escala impressionante.
A partir de bases estabelecidas no Camboja, no Laos e em Mianmar, as gangues coagem seus reféns a cometer complicadas fraudes online, atacando pessoas solitárias e vulneráveis no mundo inteiro. Os golpes, geralmente, envolvem o uso de identidades virtuais adulteradas para atrair pessoas para relacionamentos românticos fictícios e, em seguida, enganá-las para que entreguem grandes somas de dinheiro em esquemas de criptomoeda falsos.
O golpe é conhecido como “abate de porco”, em razão do método que se principia com a conquista da confiança de seu alvo — um processo que pode levar semanas. É o que se pode chamar de “engordar o porco” antes de começar a matá-lo.
Muitas das pessoas sequestradas e forçadas a trabalhar para as gangues de fraudadores são chinesas, porque, de início, os grupos criminosos se concentravam em extorquir indivíduos na China. Mas os alvos das gangues se expandiram internacionalmente. Nos Estados Unidos, o FBI informou que, em 2022, os americanos perderam mais de US$ 2 bilhões no golpe do “abate de porco” e em outras fraudes de investimento. Aumentou também o número de pessoas da Índia, das Filipinas e de mais de uma dúzia de outros países que têm sido traficadas para trabalhar para as gangues, o que levou a Interpol a declarar essa tendência como uma ameaça à segurança global.
Os captores puseram Lu para trabalhar como contador, e, durante meses, ele rastreou milhões de dólares em rendimentos ilícitos, além de gerir as despesas diárias deles.
Ainda dentro do acampamento, Lu contatou o Times. Conseguiu enviar centenas de páginas de registros financeiros, fotos e vídeos do local, na esperança de que, em algum momento, pudesse expor a operação.
Também enviou uma captura de tela do mapa que permitia ver sua localização aproximada em Mianmar. O Times analisou imagens de satélite da área e localizou geograficamente as fotografias que Lu tirou no solo em um conhecido complexo de geração de fraudes chamado Zona Dongmei.
Myawaddy, no sudeste de Mianmar, onde fica a Zona Dongmei, oferece a base perfeita para a operação de grupos fraudulentos como o que sequestrou Lu. Nessa região, o governo é impotente. Os bandidos dão as regras, governam com impunidade e são apoiados por grupos étnicos locais armados que são pagos para fazer a segurança. Tais condições tornaram a área um ímã para as gangues criminosas chinesas.
Depois que pessoas como Lu são levadas para Mianmar, elas ficam isoladas da família e dos amigos, em uma região praticamente fora dos limites para estrangeiros e para os meios de comunicação social e bem longe do alcance da polícia.
O chefe da organização em que Lu estava era um chinês grisalho de meia-idade a quem todos chamavam de Xi Ge, que, em chinês, se traduz mais ou menos como “Irmão Alegria”. Ninguém no acampamento usava seu nome verdadeiro.
Lu disse que Xi Ge alugou o espaço do complexo de Dongmei e comandou uma operação com cerca de 70 pessoas, a maioria das quais eram cidadãos chineses que também estavam presos em Myawaddy. Lu foi informado mais tarde de que Xi Ge havia pagado por ele US$ 30 mil aos traficantes de seres humanos.
Os trabalhadores se sentavam em um escritório aberto sob a vigilância dos supervisores. Em uma sala, usavam centenas de telefones celulares espalhados pelas paredes para criar perfis de aparência autêntica no WeChat, aplicativo de conversas bastante popular na China. Esses perfis eram alimentados com dados, incluindo contas roubadas do próprio WeChat, números de celular, fotos e vídeos, que muitas vezes eram comprados online no atacado.
Na primeira semana no acampamento, Lu usou um telefone comercial para entrar em contato com um amigo no aplicativo de mensagens Telegram. No dia seguinte, os gestores vieram confrontá-lo, ameaçando espancá-lo ou vendê-lo para outro complexo em Myawaddy, onde se dizia que eram extraídos órgãos de trabalhadores traficados.
Lu desabou e implorou para que fosse solto. Ele se lembra de ter dito aos seus captores: “Não posso fazer isso. Não estou preparado. Por favor, me deixem ir”. Não funcionou. Xi Ge deu a Lu três opções: pagar um resgate de US$ 30 mil, trabalhar como golpista como todos os outros ou pôr suas habilidades em prática e ajudar na contabilidade. Depois de seis meses, disse ele, a gangue consideraria sua possível libertação.
Lu optou por ser contabilista. Ao fim de quase seis meses, conquistou a confiança de seus captores, e lhe foi permitido usar o celular pessoal alguns minutos por dia.
Ele contatou a família e amigos e disse a eles que havia sido sequestrado. Tirou fotos do complexo e filmou pequenos vídeos dentro da sede do grupo. Desenhou um organograma e escreveu um glossário com a terminologia do setor. Carregou tudo em uma conta de email criptografada e excluiu os arquivos comprometedores de seus dispositivos de trabalho.
Depois disso, enviou o material para o Times com outras informações, como os registros financeiros que manteve de julho a novembro e uma lista dos nomes legais, registros de transações e números de telefone das vítimas do golpe.
Em 3 de janeiro, Lu implorou a Xi Ge que cumprisse sua promessa de libertá-lo. Em vez disso, ele foi levado para um dormitório reservado à punição de trabalhadores desobedientes. Foi algemado a um beliche, sendo liberado apenas para fazer as refeições e ir ao banheiro. Um guarda o vigiava o tempo todo. Os aparelhos eletrônicos de Lu foram retirados. Ele confessou a seus captores que havia contado o que se passava ali para a mídia e amigos. “Tentei fazer com que entendessem que estávamos ambos encurralados. Eles não podiam mais confiar em mim nem me revender a outra organização. Eu era uma bomba-relógio”, contou.
Foi então que a tortura começou.
No dia 14 de janeiro, a mais de 3.200 quilômetros de onde Lu estava, na cidade chinesa de Taizhou, o telefone dos pais de Lu tocou. A gangue havia enviado dois vídeos. Em um deles, Lu aparecia se contorcendo no chão, gritando de dor. Para seus pais, foi insuportável. “Meu marido não me deixou ver, mas assistiu. Meu coração não aguentaria”, disse a sra. Peng, mãe de Lu, que falou com a condição de que seu primeiro nome não fosse divulgado.
A gangue exigiu um resgate de 500 mil iuanes chineses, ou cerca de US$ 70 mil. Para o casal, que possuía um pequeno negócio de venda de banners e letreiros de LED, não era pouco dinheiro.
Os pais de Lu denunciaram o sequestro à polícia e procuraram a ajuda de embaixadas e associações empresariais chinesas. Toda manhã, ao nascer do sol, iam à praia rezar pelo retorno seguro do filho.
Depois, a polícia da sua província natal, Zhejiang, apresentou-os a um homem que, segundo ela, poderia ajudá-los. Conhecido pelo apelido de “Dragão”, ele disse ter resgatado com sucesso mais de 200 cidadãos chineses presos em complexos fraudulentos no Sudeste Asiático.
Em 21 de janeiro, uma semana depois do resgate, vídeos foram enviados. Dragão disse aos pais de Lu que um amigo poderoso dele, um empresário chinês com conexões com a milícia armada local, havia feito uma viagem a Dongmei naquele dia e confirmara que o filho deles estava no complexo. Dragão garantiu que seu amigo poderia retirar Lu de lá.
Depois, Dragão informou que o bem relacionado empresário chinês havia voltado a Dongmei em 23 de janeiro — dessa vez com o apoio de um general e dezenas de soldados das Forças da Guarda de Fronteira, grupo armado local alinhado com a junta que governa Mianmar — e perguntara por Lu. Dessa forma, Lu conseguiu sair. Em poucos dias estava de volta à China; seu voo pousou em Xangai em 2 de fevereiro.
Nos últimos meses, autoridades chinesas têm trabalhado com autoridades do Sudeste Asiático para prender e deportar para a China milhares de pessoas acusadas de trabalhar em grupos fraudulentos, mas os especialistas acreditam que muitas organizações simplesmente mudam suas operações de lugar.
Lu conversou com a mídia chinesa, prestou consultoria para um projeto de filme e, agora, planeja escrever um livro de memórias. “Essas gangues chinesas estão espalhando uma forma de escravidão moderna. Quero que o mundo inteiro saiba disso”, declarou.
Fonte: https://noticias.r7.com/internacional/trabalho-forcado-torturas-e-ameacas-o-relato-de-um-chines-vitima-de-trafico-humano-29122023